A noite cai e me vejo caminhando por essa vizinhança
novamente. As mesmas casas, as mesmas pessoas, a mesma iluminação, a mesma
sensação de desprezo que sinto toda vez que percorro este caminho.
Apesar disso, ninguém me incomoda, o tempo continua, as
estrelas e a lua continuam brilhando fortemente no céu e, nesse momento,
imagino quão melhor esta noite poderia se tornar. Seu silêncio é meu refúgio e
minha paz.
De repente
há uma quebra na calmaria da noite com um barulho estridente do que me parecem
ser motos e delas, no meio da escuridão, surgem três jovens iluminados apenas
pelas estrelas e pela lua. Imediatamente engulo em seco e sinto um calafrio, ao
mesmo tempo em que caminham em minha direção.
Antes que eu possa fazer algo já estou no chão. Atacado pelos
três que se autodenominam “justiceiros”. Sangue quente escorre pelo meu rosto
quando um deles arranca um pedaço da minha orelha, enquanto os outros tratam de
me despir e me prender a um poste. Mas o que fiz? Por que estão chamando isso
de justiça?
Logo vão embora. Comemoram o feito como se eu fosse um
monstro, como se o que tivessem feito fosse um ato de justiça. Enquanto espero
despido e preso a um poste, vejo meus agressores afastando-se e desaparecendo
na escuridão e, junto a eles, minha dignidade como ser humano esvai-se.
Quem leu a história acima logo percebe o que, possivelmente,
estou narrando e na perspectiva de quem o faço. Sim, refiro-me ao caso do
menino de quinze anos que foi brutalmente atacado na última semana e que
dividiu opiniões em nosso país.
Muitos discordaram da atitude dos “justiceiros" e os
condenaram pela atrocidade que teriam feito, outros os defenderam e disseram que
em frente a um Estado omisso e uma polícia ineficiente nada mais justo do que
se defender, como a jornalista Rachel Sheherazade.
Afinal,
por que o suposto ato ocorreu? Bem, segundo a grande parte das informações
disponíveis o grupo de “justiceiros” teria identificado o jovem como um dos
ladrões que assolam a região e que no último ano teve um aumento significativo
na criminalidade. Resolveram, então, praticar justiça com as próprias mãos.
Aqui
entra minha dúvida. Até onde este crime foi racista? Partindo do pressuposto
que o jovem realmente era um assaltante e que os “justiceiros” o reconheceram, onde se encaixa o racismo aqui? Concordo veemente que o que eles fizeram foi
errado. Como já dizia Gandhi: “Olho por olho e o mundo acabará cego”.
Mas,
assim como muitas pessoas, compreendo o lado dos agressores, isso, logicamente,
partindo do pressuposto que o jovem realmente era um assaltante que assolava a
região. Antes que comecem as crucificações eu gostaria de lançar a mesma
pergunta que a Rachel lançou como campanha. Dos que defendem o jovem agredido,
algum de vocês já adotou ou colocou pra dentro de casa alguém na situação dele?
Pois
bem, minha vó já fez isso há muitos anos. O que aconteceu? O menino cresceu com
a minha família por quinze anos e aos dezessete anos nos assaltou quatro vezes
e, da mesma forma que ainda acontece atualmente, a polícia militar dizia que
não podia fazer nada.
No
final das contas foi minha família que o prendeu, com a ajuda de muita coragem,
senso de proteção e um rodo de banheiro quebrado na cabeça do indivíduo.
Imagino que se fosse nos dias atuais o caso seria reportado pela mídia acusando
minha família de violência contra um negro e nem se importaria de relatar o
resto, visto que atualmente tudo que ocorre com relação aos negros,
homossexuais, mulheres ou qualquer grupo social é considerado racismo ou preconceito.
Observem
que durante o texto inteiro eu não o chamei de jovem ou menino negro. Não fiz
isso porque não vejo aqui um crime de racismo, observo realmente uma sociedade
cansada do aumento da violência gratuita em seu país. Lembrando que temos “apenas”
onze das trinta cidades mais violentas do mundo, como podem ver neste site.
Por
fim, entendo os dois lados da moeda e, partindo do pressuposto que o jovem
realmente fosse um criminoso, não considero o crime como racista, mas um crime
e, como qualquer crime, punível pela lei. Por outro lado, se o mesmo jovem não
for o que os “justiceiros” alegaram que fosse aí sim o racismo entra em cena e,
talvez, a minha pequena história do começo do texto tivesse sido uma das
verdades naquela noite.
Se
ainda há racismo é porque nós não o deixamos morrer e sempre que há uma
oportunidade logo taxamos a situação como racista. Esquecem-se que, antes de
tudo, somos humanos e creem que ao taxar a situação como racista são os
primeiros a lutarem contra o mesmo. Pelo contrário, são os primeiros a
admitirem que ainda existem diferenças entre nós.